quinta-feira, 29 de março de 2012

Poetas, jornais e tesouras

Hoje foi um dia chuvoso no Rio; talvez o primeiro dia frio do outono. Navegando na internet topei, de repente, com a morte do Millôr Fernandes. Fiquei sinceramente triste. Porque era outono, porque chovia e porque o Millôr havia partido...

Lá pelo início dos anos 2000, quando eu começava a me aventurar com maior gana no mundo das palavras, tinha algumas manias incomuns para um rapaz de 15, 16 anos. Costumava comprar o Jornal do Brasil - nos domingos somente, pois a grana era curtíssima - e quando topava com alguma matéria interessante, a recortava, colava em uma folha de papel e a guardava (era meu copy and paste literal). Tinha especial interesse pelas matérias literárias e, abrindo a esquecida e empoeirada pasta onde essas matérias estão, reparei a frequência com a qual a coluna do Millôr passou por minha tesoura.

Dentre as matérias que mais gostei, gostaria de citar a série que o jornalista publicou sobre o poeta Yehuda Amichai. Na época, fiquei muito impressionado pelo teor visceral dos poemas, traduzidos para o português pelo Millôr. São poemas que procuram transcender as identidades e fundamentalismos nacionais, na busca por uma humanidade que reconheça e supere as mazelas das guerras e conflitos de qualquer natureza.

Declamei um dos poemas do Amichai em um sarau, na época do ensino médio, ao som de Stairway to Heaven, do Led Zeppelin. O poema está no final desse post.

Escrevo esse texto em uma madrugada que se insiste chuvosa.

Vá em paz, Millôr.



Poema temporário em meu tempo

A escrita hebraica e a escrita arábica vão do leste para o oeste
A escrita latina do oeste para o leste.
Linguagens são como gatos:
Não se deve alisar o pêlo em direção contrária.
As nuvens vêm do mar, o vento quente do deserto,
As árvores dobram-se ao vento,
E pedras voam aos quatro ventos,
Em todos os quatro ventos. Eles jogam pedras,
Jogam esta terra, uns nos outros,
Mas a terra sempre cai de volta à terra.
Jogam a terra, querem se livrar dela,
Suas pedras, seu solo, mas não podem se livrar dela.
Jogam pedras, jogam pedras em mim
Em 1936, 1938, 1948, 1988,
Semitas jogam em semitas e anti-semitas em anti-semitas,
Homens maus jogam, justos jogam,
Pecadores jogam e tentadores jogam,
Geólogos jogam e teólogos jogam,
Arqueólogos jogam e arqui-hooligans jogam,
Rins jogam pedras e bexigas jogam,
Pedras cabeças e pedras frontispícios e o coração de uma pedra,
Pedras na forma de uma boca aos gritos
Pedras que se ajustam nos seus olhos
Como um par de óculos,
O passado joga pedras no futuro,
E todas elas caem no presente.
Pedras em pranto e risonhas pedras do cascalho
Até Deus na Bíblia jogou pedras,
Até o Urim e o Tumim foram jogados,
E ficaram presos na couraça da justiça
E Herodes jogou pedras e saiu daí um Templo.
Oh, o poema da tristeza da pedra
Oh, o poema jogado nas pedras
Oh, o poema de pedras jogadas.
Existe nesta terra
Uma pedra que nunca foi jogada
E nunca construída e nunca revirada
E nunca descoberta e nunca recoberta
E que nunca gritou de um muro
E nunca foi recusada pelos construtores
Nem colocada em cima de uma tumba
Nem embaixo de um casal de amantes
E nunca se tornou fundamental?
Por favor não atirem mais pedras,
Vocês estão rojando a terra
A terra sagrada, plena, aberta,
Vocês estão rojando a terra ao mar
E o mar não a aceita
O mar diz, em mim não.
Por favor, joguem pedras pequenas,
Fósseis de caramujos, joguem cascalho,
Justiça ou injustiça das pedreiras de Migdal Tsedek,
Joguem pedras macias, joguem doces torrões,
Joguem limo, joguem lama,
Joguem areia da praia, poeira do deserto,
Joguem crosta,
Joguem solo, joguem vento,
Joguem ar, joguem coisa nenhuma
Até que as mãos fiquem cansadas
A guerra fique cansada
E mesmo a paz fique cansada e fique


Yehuda Amichai (traduzido por Millôr Fernandes) 

quarta-feira, 14 de março de 2012

Encontros

Para meu pai, o Nezo, com amor


Na última semana completou-se um ano que meu pai decidiu partir de nosso convívio. Embora escrever seja uma das atividades que mais me dão prazer, pouco escrevi sobre sua morte. Talvez, porque a morte seja algo difícil de se racionalizar, pelo menos para mim. Espero que ao ler esse texto você não me tome por cético. É que todas as diversas concepções de morte, ou destino da alma, exigem algum grau de organização cósmica, modelo, padrão, que nada me dizem, não me afetam, não me tocam; o que é muito diferente de nada sentir.

Sinto constantemente a presença de meu velho, nos pequenos detalhes, nas lembranças, naquilo que tínhamos em comum e também, porque não dizê-lo, nas diferenças.

Lembro, por exemplo, quando certa vez ele chegou do trabalho e me disse, estendendo uma fita k7 na minha direção: "filho, ouça isso!". Eu devia ter uns 13 anos.

Era uma fita do Milton, o Nascimento. Ouvi como um louco, me apaixonei. Era uma coletânea intitulada A Arte de Milton Nascimento.



Certa vez ele me disse que um amigo estava justificando a suposta falta de interesse dos jovens em artistas mais 'antigos', citando o próprio Milton: "esses caras não são interessantes; é tudo arcaico, por isso, os jovens não gostam deles". Ao que meu pai respondeu, orgulhoso: "Ah, mas meu filho gosta muito!"

Quatro meses após sua morte, me vi pela primeira vez na linda cidade de Ouro Preto. Fui até lá sozinho, mas encontrei pessoas maravilhosas com quem passei ótimos momentos. Fui ao Festival de Inverno que acontece anualmente na região. Em uma noite muito fria, fazia menos de 10 graus, fomos à cidade vizinha de Mariana. Na praça ao lado da estação ferroviária, uma pequena multidão se aglomerava, em frente a um palco.



Naquele noite, vi pela primeira vez um show do Milton. Chorando como nunca, naquela região cheia de histórias de nosso país, ouvindo uma voz quase divina, senti uma paz extraordinária. Senti meu pai. Senti, e aqui não me preocupo em ser coerente, que morte e vida são faces da mesma moeda; que somos um aglomerado desses encontros de sangue, ossos, carne, pessoas, fitas k7, cidades, vozes, música...

Entendi que o divino está no encontro e sou muito grato por isso; grato ao meu pai, grato ao Milton, aos meus amigos; à vida.


"Toda vida existe pra iluminar
o caminho de outras vidas que a gente encontrar
homem algum será deserto ou ilha
como não pode o rio negar o mar"
Filho, por Milton Nascimento e Fernando Brant.